Katia Canton - José Rufino: A Expansão da História
2018
Memória, herança, história pessoal. Na passagem para um novo milênio, esse tripé narrativo ecoa como uma busca de legitimar a razão de existência do ser humano, ancorando um grosso caldo da produção artística contemporânea no Brasil e no mundo.
É como se a arte tivesse perdido a ilusão, nutrida pela maioria das experimentações vanguardísticas do século 20, de que, pela simples formulação de uma obra sintética, abstrata, essencial, o artista poderia transcender a realidade.
Se uma grande parte desses experimentos modernistas acabou mergulhando no hermetismo, distanciando-se, como conseqüência, do público, a busca dos artistas contemporâneos que compreendem seu tempo e que se sintonizam com o século 21, vai além da preocupação narrativa. Conscientes de suas heranças modernas, munidos de uma sofisticação formal construtiva resultante dessa herança e, ao mesmo tempo, ávidos pela incorporação pela arte de questões pungentes sobre a condição humana, os grandes artistas contemporâneos expandem o conceito da arte e dissolvem a dicotomia abstração e figura, formalismo e expressionismo.
O paraibano José Rufino é um expoente dessa nova postura. Se por um lado sua carreira artística tem como âncora uma preocupação com a história pessoal e familiar, Rufino trabalha sua bagagem emocional com um esmero estético de efeitos sutis e sofisticados, que o levam a percorrer campos de significados inusitados. O artista revela-se um exímio manipulador de símbolos.
Desde que adotou o nome do avô paterno, José Rufino, identidade do patriarca da família paraibana de latifundiários, o artista tem construído uma série de instalações que remetem à memória e a tradição de sua família.
Primeiro veio Respiratio, composta de gavetas de madeira recheadas de gesso entumecido, estufado. Depois, foi a vez de Vociferatio, feita de escrivaninhas antigas, dispostas caoticamente, com os pés fixados nas paredes e as gavetas abertas. Em seguida, o artista cria Lacrymatio, instalação feita com uma herança de cerca de cinco mil cartas, todas endereçadas ao patriarca José Rufino. Agora, ele realiza Sudoratio, com malas populares nordestinas escancaradas, de onde se desprendem formas bojudas, grossos pingos de gesso.
Os títulos das instalações, referentes aos verbos respirar, gritar, lacrimejar e suar, respectivamente, fazem parte do que o artista chama de “acervo de sensações” encontrado nas lembranças de infância e no mergulho na história familiar. Não à toa, são todas sensações de expurgo, que saem de um âmago, desembocam e ganham corpo nas obras artísticas como segredos explosivos, cumpridos e trancafiados por gerações. Trata-se de um processo corajoso de purificação.
Em Lacrymatio, Rufino lida com o mais comprometedor dos materiais que sugerem um vasculhamento emocional. O artista destranca um velho baú da família e manipula diretamente uma herança de cinco mil cartas, todas remetidas ao avô paterno, José Rufino.
Nos rastros das cartas, coletadas desde 1979, o artista testemunhou um discurso geracional viciado, imutável: as cartas de seu bisavô pareciam-se com as do seu avô, que por sua vez lembravam as de seu pai. Pois Rufino resolveu subverter esse campo ideológico sacralizado através da introdução do caos. Durante seis anos, entre 1990 e 1996, utilizando uma têmpera negra, feita com pigmento seco sobre papéis de carta molhados com água e aglutinante, ovo ou cola, José Rufino comprometeu-se a pintar sobre aqueles documentos históricos, cobrindo-os quase que totalmente, servindo-se, para tanto, de uma consciência obsessiva.
Ao fazer isso, o artista está irremediavelmente alterando a história. Ele não apenas transgride a forma - a imagem das cartas de família, omitindo seus conteúdos, que são, no máximo, sugeridos, como rastros de um palimpsesto descoberto sobre uma velha pintura - como também transmuta sua função.
As ex-cartas de José Rufino, agora recobertas de têmpera escura, recebem suportes móveis, feitos com placas de acrílico e metal, tubos de borracha e lona. Como móbiles sinistros, fixados às paredes em diversas alturas, os papéis se agregam através desses tubos e fios emborrachados a uma velha cadeira de madeira. Imóvel e austera, a cadeira funciona como testemunho silencioso daquelas cartas, daqueles discursos viciados e empoeirados, agora subvertidos pelas manchas de tinta negra.
Na organização dessa instalação sutil e, ao mesmo tempo, complexa, José Rufino revela sua capacidade de transcender a mera recomposição de uma narrativa pessoal.
Utilizando a moldura teórica do pensador francês Roland Barthes, na construção de seu trabalho, José Rufino vai da obra ao texto. A obra refere-se justamente a uma construção que discursa sobre a história pessoal e familiar. O texto decorre da transcendência de um trabalho artístico que expande o conteúdo da instalação para além dos limites de uma crítica narrativa.
Como explica Barthes, referindo-se à concepção da linguagem, a obra é um fragmento ou substância, que ocupa um espaço determinado. Já o texto é um campo medodológico que subverte classificações e experimenta limites. A obra refere-se a um signo preciso, enquanto que o texto é dilatador e dilatante: expande, provoca associações, é radicalmente simbólico e, como tal, não pode ser detido.
Lacrymatio é texto. Aqui, José Rufino constrói uma organização formal baseada na própria interferência do caos da pintura. O resultado é um trabalho que multiplica o espaço tanto quanto pluraliza as interpretações. O que se vê expande de longe a interferência nas relações pessoais para atingir uma universalidade.
A seriação disposta pela quantidade variável de papéis de carta pintados e dependurados contra a parede, a multiplicação dos fios e dos tubos de borracha negra “costurados” e ligados a uma única cadeira central assumem uma sobreposição de conteúdos. Ora sugerem o trono decadente de um velho patriarca, imbricado a cordões umbilicais e nostálgicas memórias; ora lembram uma implacável e muda cadeira elétrica, cercada de fios. Ora se tornam simplesmente uma paisagem pós-vida, criada pela combinação da cadeira vazia e pela sensação de fuligem resultante da pintura das cartas, testemunhas da fantasia de uma queima de arquivo.
Nota: conceito retirado do texto “From Work to Text”, páginas 155 a 164. In Image, Music, Text. Barthes, Roland. Traduzido por Stephen Heath. New York, Noonday Press, 1977.
* Katia Canton é escritora e crítica de arte, PhD pela Universidade de Nova York. Atualmente, é docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Originalmente publicado versão em espanhol no catálogo da Sexta Bienal de La Habana, El individuo y su memoria Cuba. Editora Naço, p. 172, 1997; E catálogo produzido pelo artista para a Sexta Bienal de Havana, Cuba, 1997.