Textos

José Rufino - Parecer sobre Anjo da Morte
2018

PARECER À Arquiteta Cristina Evelise
Chefe da Divisão de Fiscalização, Infração e Multas do IPHAEP


Em resposta à solicitação da arquiteta Cristina Evelise, Chefe da Divisão de Fiscalização, Infração e Multas do IPHAEP, apresento breve parecer sobre a possível implantação da escultura fúnebre de Umberto Cozzo, “Anjo da Morte”, em logradouro público:

“Remover a obra é destruir a obra”. Estas foram as palavras proferidas pelo famoso escultor Richard Serra, durante uma audiência pública para decidir o destino de uma de suas mais polêmicas obras. O famoso “Arco Inclinado”, gigantesco arco de ferro, implantado sob encomenda da própria administração da cidade de Nova York na Federal Plaza, gerou grande controvérsia sobre sua locação. Obrigava aos transeuntes a assumirem novos e mais longos percursos e, atravessando-se no tecido urbano como parede implacável, suscitou longos embates legais, entusiasmados debates populares e por fim, muito além de uma escultura gigantesca, passou a ser um ícone das discussões em torno da própria vida na cidade e do papel do indivíduo no complexo sistema de uma grande metrópole.

O conceito de especificidade de locação de obras de arte foi exatamente introduzido pelos artistas minimalistas dos anos 60. A partir daquele momento, um certo idealismo passava a fazer parte da consciências dos artistas em relação aos espectadores. Estava definitivamente estabelecido que “as coordenadas de percepção não existiam somente entre o espectador e a obra, mas permeavam o espectador, a obra e o lugar em que ambos se encontravam” (1).

Apesar aparecer como espécie de postulado de um grupo de artistas especialmente produtores de obras para espaços externos, o conceito de especificidade aparece como desejo de “artista” e, mais que isso, conceito de obra, em muitos momentos da história da arte e em inúmeras culturas. Poder-se-ia aqui citar incontáveis estruturas humanas, para não chamá-las necessariamente de arte, cujo sentido de especificidade ao local chega a ser radical e que, deslocadas, estariam, como diria Richard Serra, destruídas. Somente como exemplo bastante antigo, cita-se o monumento Stonehenge, grande círculo de pedras construído na Inglaterra entre 3.800 e 4.000 anos atrás numa paisagem plana e cujos monólitos de pedra encontram-se perfeitamente orientados segundo preceitos astronômicos. Que sentido teria tal estrutura, se ao seu tempo, tivesse sido trasladada e re-implantada no sopé de uma montanha, escondida dos primeiros raios do crepúsculo?

Nesse fluxo de estruturas arquitetônicas, esculturas, afrescos, relevos e outras obras construídas para implantação em locais específicos e até para públicos específicos, encontram-se as muitas manifestações em torno da morte. Oferendas, figuras de deuses, abrigos, mausoléus, urnas, pirâmides ou qualquer outra forma de relação humana com a cosmogonia da morte são tão comuns na história da arte e da arquitetura que por vezes são os únicos registros de grandes civilizações. Talvez não exista obra humana com caráter de especificidade de locação mais óbvio do que qualquer objeto relacionado ao culto da morte. Na cultura ocidental católica isso assume um território bastante específico: o cemitério. A história dos cemitérios católicos está intimamente ligada aos movimentos artísticos desde a Idade Média, tendo em vista que cabia aos artistas a elaboração das criptas de religiosos de altas patentes e de indivíduos de famílias ricas. Esta história chegou ao século XX e deixou, inclusive no Brasil, importante legado de arte fúnebre. Neste cenário está o escultor italiano Umberto Cozzo e seu “Anjo da Morte” encomendado para o Mausoléu de Anthenor Navarro no Cemitério da Boa Sentença.

O clássico “Anjo da Morte” na verdade é uma figura de esqueleto que carrega o instrumento da morte, o........... O anjo de Cozzo é uma figura de asas contraídas, em estado de lamentação: um verdadeiro anjo-carpidor. Foi, sem dúvida, modelado por seu autor para chamar qualquer transeunte do cemitério a um instante de cumplicidade, de dor compartilhada com sua figura estática, fria, mas dramaticamente simbólica.

Arrastar a figura de lamentação de Cozzo para qualquer outro lugar, independente de qualquer pressuposto de propriedade, preservação, visibilidade, re-instauração ou re-leitura, significa matar o conceito de especificidade fúnebre de sua escultura, cortar a pátina de seu lamento a Anthenor Navarro e, mais que isso, chamar os transeuntes de outro logradouro qualquer, a um sentimento de lamentação impertinente.

Eu me calaria, e até aplaudiria, se tal ação de re-locação fosse produto radical de obra de outro artista, que ao apropriar-se de obra fúnebre original ou cópia dela, implantando-a em situação inusitada, ou mesmo museográfica, suscitasse novas leituras e sentimentos. Isso, obviamente, não se aplica ao caso em tela, tendo em vista as fortes implicações jurídicas patrimoniais e à gritante agressão cultural que ação artística como essa causaria em nossa cidade.

1 - Crimp, Douglas. 2005. Sobre as ruínas do museu. Martins Fontes, São Paulo, 303p.

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