Textos

Agnaldo Farias - O Livro de Areia de José Rufino
1998

A linha consta de um número infinito de pontos; o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de volumes... Não, decididamente não é este, mote geométrico, o melhor modo de iniciar meu relato.
O Livro de Areia, de Jorge Luis Borges

 

Seria então o caso, nessa altura em que já estamos à beira de um grave estado de dispersão por não sabermos mais como conservar nosso centro diante dessa multidão de coisas que nos orbitam clamando pela nossa atenção, coisas e informações que nos soterram provocando não o desejado conhecimento, mas o desterro da amnésia, do desmemoriamento; seria então o caso, dizia, como maneira de fazer cessar esse desmoronamento interior diante de tanta virtualidade, diante de um mundo impalpável ainda que convincente, dotado de uma dinâmica que nos fissura a alma, de nos voltarmos aos objetos que nos vem acompanhando ao longo de nossa perplexa trajetória, buscando a segurança dos antigos móveis, cadeiras, mesas, poltronas e gavetas da casa paterna; o aconchego das coisas pequenas e queridas, canetas, carimbos, relógios e botões que, sem saber bem porque, resistimos a lançar fora, para o lixo; o regaço misterioso do tempo retornando pela manipulação dos vagos e variados despojos das remotas relações que efetuamos com os outros, a namorada, os irmãos, os amigos, por intermédio de cartas, fotografias, postais, recados, faturas comerciais e os bilhetes que nos franquearam as viagens de toda natureza? Não seria o caso de nos aferrarmos naquilo que mesmo gasto, fragmentado, mínimo, é sólido, insiste am permanecer? Para José Augusto Almeida, esse é, precisamente, o caso. Para quem não sabe, José Augusto Almeida, auto-re-nomeado José Rufino, é neto do senhor de engenho José Rufino, do engenho Vaca Brava, outrora importante, às margens do córrego do mesmo nome, um dos tantos que cortavam o município de Areia, Paraíba.

Sua atitude de sobrepor o nome do avô ao de seu próprio nome – um caso de homonomia por decisão afetuosa e não por arbitrariedade paterna – esclarece o caminho que ele resolveu trilhar para a construção de sua obra, cujo curso agora se estende nessa série de pinturas realizadas sobre envelopes de cartas escritas pelo velho José Rufino entre os anos 20 e 50, série intitulada “Cartas de Areia”.

A poética de José Rufino constrói-se remontando o passado, escorando-se nos objetos que lhe foram legados, principalmente essas cartas que, como outras, foram retiradas de um velho baú que pertenceu ao seu avô. O nome da exposição, já se vê, é matéria a ser pensada. Cartas de Areia porque foram de lá remetidas ou porque no geral tratavam de assuntos e de gentes enredadas na vida da pequena cidade paraibana, ou de Areia porque o passado, todo o passado, é um mosaico frágil e caleidoscópico, uma paisagem constituída por uma miríade de pontos e cujo desenho varia em função do olhar que o presente lança sobre ele?

José Rufino enfrenta este tempo tendo por lastro o testemunho dos objetos que pelo demasiado convívio com pessoas que lhe são próximas terminaram imantadas por suas vidas. Esta, de fato, é a natureza dos objetos. Cada um deles, mais que um espectador calado, recebe em si como uma reverberação, o impacto de nossas pequenas aflições, de nossos dramas, dos nossos desejos, de nossos efêmeros estados de felicidade. Cravado, enterrado nas fibras das madeiras de que são feitas os móveis, esquecidos no interior de gavetas e malas, amalgamando às tintas com que se escrevem as cartas, e mesclado e amarelecido pela emoção de quem as leram no correr do tempo, está sempre um pouco de nós.

Pelos olhos e mãos de José Rufino os objetos, como enunciam os nomes de suas quatro mais importantes exposições, respiram, vociferam, choram e suam essa vida embutida, latente, por tanto tempo aprisionada. E está claro que não se trata de leitura literal, assim como os próprios trabalhos freqüentemente apenas façam alusões à ordem comum dos objetos. Podem ser gavetas e malas, como também podem ter uma aparência estranha, um artefato possivelmente pertencido a um objeto maior desaparecido. Seja como for, em qualquer caso eles parecem purgar um segredo, como uma luz ou um grito que se deixa escapar por uma fresta. E o que vai para fora não é aquilo que se conhece, porque o passado, ah! O passado, é um livro de textos cambiantes, como um campo de areia que já à tona de sua aparência plácida, perpetuamento se desfazendo ao ritmo lento do sopro suave do vento, expõem-se como terreno acidentado, infinitos grãos.

Há vários passados dentro de nós. Entre eles, aquele que escolhemos para nos representar. Mas para Rufino interessam os outros passados. Como nesses envelopes, morada de mensagens antigas e, como todas, monótonas em suas súplicas, confissões e notícias, agora transformados em suporte mediante o qual o artista faz emergir em linguagem tosca, as lembranças obliteradas pela distância ou pelo terror: a escrivaninha de onde o avô urdia os textos que davam conta de sua existência atilada, o velório desse mesmo avô, o cachorro sem cabeça, a estrada que ia para Vaca Brava, as danças, as cirandas, a pescaria, as árvores azuis mais genealógicas que vegetais...

Agnaldo Farias (texto do catálogo da mostra Cartas de Areia, Galeria Adriana Penteado, São Paulo, agosto de 1998)

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